sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Simples

De tudo o que eu me forço ou obrigo, com medo que o tempo não me perdoe desta vez. Apesar de que tudo o que eu recuso, escondo ou adio, também é por confiança no Tempo. O deus mais sábio. Apesar das discussões que às vezes travo. Eu quase me perco, eu sou mais um carro, eu sou mais um. Eu chego tão deserto de tudo estar tão perto que me furto a tocar. Eu não tenho tanto canto, eu não sou um lugar. Exausto de toda essa gente, vertigem, tem mais, tem mais. Eu não quero pensar no desconforto que sinto no corredor. Eu quero pensar em muito pouco. Quero lançar um berro rouco, um canto torto. Mas eu entro tão calado, de tanto grito contido, de tanto sussurro soprado à revelia do ouvido. Nem quero perceber os detalhes, o ambiente agradável e opressor, o whisky sobre a cristaleira, a cerveja gelada, o vento frio, e a noite inteira. Não quero olhar nos olhos dela, porque eu sei que vou esquecer de mim no momento em que o fizer, e eu o farei. Que eu venho tão cansado de tanto amor que trago, que tão amargo traguei. Das chuvas que evitei, das brigas que perdi, das que eu nem comecei. Mas eu me sento, mas eu ouço, mais eu posso, eu não peço, o que eu sinto, o que não quero, eu não minto, eu espero, eu espero, eu espero. Eu não tolero mais ser como antes, eu preciso ser mais simples, o primeiro copo, o perfeito corpo, a única dama, o eterno drama, a noite primeira, a incerta espera, a estrela da vida inteira. Onde eu fico depois de tudo? Na despedida ao elevador, na mão que eu beijei, no caminho que não vi, nas horas que não dormi no escuro a tatear, eu quero te contar. De tudo o que eu não sei. Não sei onde a noite acaba, se nunca ou de repente, se jamais houve, ou o que aconteceu com a gente. Mas nada assim tão esquisito. Simples. O Tempo também é o deus em quem eu mais acredito.

All Star Branco

Não chovia, não era véspera de feriado, não era maio, o dia não estava assim tão bonito nem o céu tão azul. Nada de muito ruim tinha acontecido também. Dentro da aura densa e nebulosa em que me envolvo involuntariamente quando estou lá, não havia nada de tão diferente assim. E não que eu não soubesse ver, acredite, eu veria.

Lembro-me agora que talvez o dia estivesse ensolarado, lembro que meu olho doeu mais do que o costume quando eu abri a pesada porta de vidro num gesto calculadamente polido e desleixado. Lembro que a vi de soslaio, quase visão periférica, no quarto de segundo em que eu consigo olhar nos olhos de alguém, antes que meus olhos fujam assustados para o vago, o etéreo, o nada. Este quarto de visão me permitiu ver que ela me olhou também, por mais tempo que eu, e não que isso quisesse dizer alguma coisa, além de constatar que de fato eu olho muito pouco para qualquer pessoa. Ela estava de pé sobre o último dos quatro degraus, talvez fumasse, e conversava com alguém que eu não olhei. Quando estou dentro desta aura, ninguém parece ter rosto. Algo nela me pareceu familiar, pensei nisso durante um quarto de minuto, e depois me esqueci completamente. Nada aconteceu depois disso, não choveu sobre minha cabeça, eu não colhi nenhuma flor pelo caminho, não encontrei ninguém que não via há muito tempo, não atropelei nenhum cachorro, e nenhuma frase lida na multidão urbana me chamou a atenção.

Dali a cinco, talvez sete, talvez sete dias e meio, eu cruzei com ela novamente. Eu descia a escada e ela subia, ambos apressados. Lembrei do outro dia, e como havia esquecido, tive de recordar em um quarto de segundo onde a havia visto anteriormente, e de fato, havia qualquer coisa de familiar nela, mas ainda não foi só, qualquer coisa em mim tentou dar algum tipo de aviso, ou menos que isso, poderia dizer que algo lá dentro tremeu ou acordou, mas não foi pra tanto, no máximo alguma realmente leve reação química aconteceu, eu balbuciei qualquer coisa que pudesse ser ligeiramente agradável, nada mais saiu do que meio bom dia, e pelo quarto de segundo em que eu a olhei, percebi que ela também tentava dar um sorriso que acabou saindo tão bobo quanto o meu, mas no quarto degrau abaixo deste encontro eu já havia me esquecido de qualquer coisa.

E foi só, eu não tropecei nos degraus restantes, não achei nada perdido pelo caminho, não esbarrei em ninguém, meu celular não tocou, não havia nada escrito no banheiro ou em qualquer outro lugar que me chamasse a atenção.

Dali a dois, talvez três dias, era sexta feira. Era sexta feira, e não era nada além disso, eu não tinha planos grandiosos, não haviam festas ou encontros à vista, eu não viajaria, não tinha dentista marcado, nem livros pela metade. Era sexta feira e eu trabalhei até um pouco mais tarde, não porque realmente precisasse, não porque realmente quisesse, não porque fugisse, nem resistisse. E já era noite, e eu fui fumar um cigarro na salinha, também chamada fumódromo, mas eu não gosto deste nome.

Abri a porta e a salinha estava escura, havia mais uma menina lá, que começou a puxar conversa comigo, e eu rebatia com respostas vagas e cômodas, mas que a satisfaziam. Não era uma noite tão bela assim.

Então ela entrou. Ela abriu a porta, e algo em mim se paralisou por um quarto de segundo, ela sussurrou uma saudação qualquer, eu sussurrei outra ainda mais baixo, a outra garota continuou tagarelando, e ela percorreu todo o diâmetro da sala um tanto cabisbaixa, tímida, até sentar-se no sofá em frente à porta, a noventa graus de onde eu estava sentado. Poderia dizer que comecei a ver as coisas em câmera lenta, mas seria dramático demais. Ela estava de cabelos soltos, pretos e compridos até passarem um pouco os ombros, blazer cinza risca de giz, calça jeans e all star branco. Como estava escuro, e como eu não queria, não sei que cor eram seus olhos, mas os imagino escuros agora. Ela não era propriamente bonita, não saberia defini-la, mas se eu tivesse de dizer algo, talvez pudesse dizer simplesmente que ela cabia em mim. Eu também poderia dizer que foi o blazer, a maneira tímida como entrou, o sussurro indecifrável na tentativa de parecer simpática, ou o free ou marboro light que ela levava na mão esquerda, a forma elegante como acendeu o cigarro, ou até mesmo o conjunto disto tudo, mas a quem eu estaria enganando? Foi isto tudo sim, é claro, mas foi isto tudo e o all star branco. Como ficar indiferente à alguém que entra desta forma numa sexta feira que não tem nada especial, usando um all star branco?
Então eu entendi. Então eu vi tudo. Até por que, desde que aquela porta tinha se aberto, eu já não ouvia nada do que a outra garota dizia. Eu soube quando ela acendeu o cigarro, que eu conseguiria dizer qualquer coisa de simpático, e confirmar a atenção dela que já estava em mim desde o dia do quarto degrau de fora, porque mesmo com toda esta aura cinza e densa, eu vejo. Eu soube que conseguiria manter uma conversa agradável, e que conseguiria parecer interessante mesmo sem inventar nada, mesmo sem ocultar nada. Eu soube que arrancaria o nome dela ainda naquela sala, que descobriria se ela era nova por lá (talvez daí viesse parte da timidez), que necessitaria de muitas e variadas informações da área onde ela trabalhava e que depois eu descobriria amigos em comum dentro do trabalho, que conseguiria forjar encontros, e combinar almoços casuais em turma, construir uma pseudo-amizade apenas para que descobríssemos mais e mais interesses em comum, e o que ela não gostasse em mim não a amedrontaria, pelo contrário, a atrairia, e que ela quereria me conhecer mais e mais, e eu a ela, e que eu não deixaria isto me amedrontar, que acabaríamos ficando juntos em algum happy hour, ou evento de trabalho em que sempre tem bebida demais, algum aniversário de algum amigo em comum.

E que isto seria maravilhoso, como se tivéssemos sido preparados para isso de alguma forma estranha, e nosso beijo seria exato, sem sobrar nem faltar, de duração perfeita. Que os dedos dela se encaixariam perfeitamente entre meus dedos, que sua cintura encontraria a medida exata das minhas mãos, que seu cheiro seria meu porto seguro, e meu peito o porto dela, que meu ombro esquerdo seria o apoio perfeito para sua cabeça.

Sabia que isto nos deixaria confusos, que acabaríamos ficando outras vezes, até que trocássemos e-mails perigosos durante o dia, e que o messenger seria meu forte aliado, e que eu conseguiria habilmente traçar uma teia onde afinal nem eu nem ela iríamos mais querer entender nada, nem evitar nada, nem negar que já estaríamos doce e irremediavelmente presos nela. Que eu conheceria o apartamento dela, e que me agradaria a decoração, e me sentiria bem em sua sacada enquanto fumássemos um cigarro dizendo as verdades elementares da vida, e quando fizéssemos sexo não seria desesperado, aflito, e nem quereria provar nada. Seria apenas a constatação de um encontro que já havia acontecido, côncavo, convexo, a temperatura ideal, confortável, o tempo conduzido perfeitamente, maestria natural de dois corpos que se aceitam.
Que teríamos almoços solitários, beijos super rápidos roubados pelos corredores, seria divertido manter isto tudo em segredo. Talvez até ousássemos uma pequena farra no banheiro quando ficássemos trabalhando até tarde. Daí começariam a desconfiar, notariam meu estranho bom humor, os sorrisos dela, eu já não reclamava tanto da vida, a pele dela parecia melhor, os risos à toa de ambos, às vezes pegariam eu ou ela cantarolando em frente à impressora.
E que então eu poderia contar a ela um ou outro segredo meu, um dos leves, ela não se assustaria tanto, acharia até bonitinho, iria pensar que me entende, me beijaria a testa quando eu estivesse com o pensamento vago. Me contaria suas coisinhas também, seus medos, seus ódios, seus desejos, eu ouviria, diria que entendo e ela acreditaria. Eu aprenderia a conviver com isto tudo, a suportar outra pessoa, a tolerar os defeitos dela, melhoraria os meus, não falaria tão mal da vida, nem ela. Enxugaria suas lágrimas em meu abraço quando ela ficasse nervosa por um motivo qualquer, por ter batido o carro ou brigado no trabalho. Ela aplacaria todo o meu ódio, me tornando gradativamente mais sereno, afinal agora eu teria um par de olhos negros que me bastariam para enfrentar o mundo. E na festa de final de ano da agência, resolveríamos escancarar mesmo, mostrar pra todos que estávamos juntos, todos nos veriam abraçados e íntimos, seríamos assunto por cerca de um mês, depois nos tornaríamos normais, corriqueiros, naturais.

E então a gente se acostumaria um com o outro, com nossas famílias, nossas manias, nossos domingos à toa. Talvez ela até torcesse pra algum outro time que não o meu. Sua mão buscaria a minha no cinema, ou quando caminhássemos pela rua, teríamos em nossos corpos um cantinho confortável para cada um de nós se ajeitar e dormir. Talvez eu pudesse lhe indicar alguns livros, e ela alguns pra mim, teríamos um filme preferido e uma música que seria a nossa. Isto tudo viraria planos, só pensaríamos para os dois agora, talvez morar junto, trocar de emprego, mudar de vida, ficar um pouco mais sério, já é hora, não é? Então eu me casaria afinal, ela estaria linda naquele dia, meu pai chorando emocionado, e a mãe dela também, meus primos bêbados xavecando as irmãs e primas dela, minhas tias pensando secretamente "e eu que pensei que ele nunca se casaria, sempre foi tão maluco, que bom que se ajeitou, Deus queira que sejam felizes", e meus tios pensando “que gostosa este malandro arrumou, e eu que até cheguei a pensar que ele fosse meio viado". Então um apartamento pequeno, perto dos nossos trabalhos, perto dos amigos, um com a nossa cara, e as viagens pra praia, pro sítio, os aniversários de família, eu saindo sozinho às vezes pra beber com meus amigos, ela pra falar mal de mim pras amigas dela. Quem sabe até um filho, um moleque pra eu ensinar coisas erradas, uma menina pra me matar de ciúme? Daí então eu perceberia, eu era este cara agora, mais velho, mais gordo, mais responsável, mais cansado, com contas e dívidas e alguém me esperando em casa, eu seria quase feliz, ou talvez pudesse mesmo ser feliz de fato, oras? Tinha chegado a minha hora também. E eu gostaria disto tudo.

Eu soube disto tudo. Eu vi isto tudo. Talvez por isso eu tenha ficado quieto, respondendo maquinalmente à outra garota que falava na salinha, enquanto ela olhava de soslaio pra mim. Talvez por isso, depois que a tagarela saiu da sala, eu a olhei e sorri um sorriso bobo, retribuído da mesma boba forma. Talvez por isso tenha ficado em silêncio, enquanto eu não sabia pra onde olhar, percebendo que ela me olhava às vezes, e que ela também tinha notado o meu all star branco. E ela fumou mais rápido que eu, apertou o cigarro no cinzeiro de uma forma um tanto nervosa, querendo demonstrar pressa, levantou ligeiramente atrapalhada, sussurrando ainda mais baixo do que na entrada, e eu que nem isso consegui? Talvez por isso, quando eu era então o único all star branco na sala, fiz a única coisa que deveria ser feita, a única coisa que conseguiria fazer: envelheci.

Meia Hora

Ela dorme enfim. Ela dorme e eu tenho meia hora para escrever um conto. Sonhei que alguém me ensinava um provérbio russo. Quem me ensinava, não me lembro. Tampouco me lembro do provérbio. Sei apenas que era russo, e na mesma frase havia as palavras trigo e prato. Existe trigo na Rússia? Sei tão pouco sobre a Rússia.
Ela dorme e em algum canto de mim repousa meu desejo adormecido. Estou ao lado dela nesta cama puída (gostaria de dizer cama de campanha, pois sempre gostei das camas de campanha, mesmo sem jamais ter visto alguma. Mas não é o caso). Suas pernas alvas estão descobertas. Passeio meus olhos pelas suas pernas, das unhas do pé pintadas de uma cor escura que eu não sei qual é, até seus joelhos. Deus, como gosto destes joelhos. O lençol amarelado ainda revela o começo de suas coxas. Esta foi a primeira coisa que eu reparei nela, quando comecei a enxergá-la realmente. Tenho agora vinte minutos. A cidade ainda existe ruidosamente lá fora, vejo as luzes dos carros como vagalumes no breu da noite sem estrelas. Olhos minhas roupas gastas na cadeira e penso que daqui a pouco precisarei tomar café. Paro, olho para a mancha escura de mofo na parede e sinto passar o tempo. Não da forma como passava antes, mas como sangue pingando de um animal recém alvejado. Lenta e eternamente. Não há como segurá-lo. Talvez eu nem queira, penso eu. Afinal, por quê me preocupo tanto com o tempo? Por quê insisto em tentar segurar o tempo, se eu estou nu neste quarto, se ela dorme ao meu lado, se tenho doze minutos para escrever um conto, se a cidade lateja lá fora, e eu preciso tomar café, e ir trabalhar?
Tudo parece simples, e então novamente a olho, e tenho certeza de que o é. E se não for, deve ser. Seu pescoço inclinado repousa sobre o travesseiro, sua pequena e linda boca treme levemente quando ela expira, seu nariz alongado, suas pálpebras com cílios que me parecem perfeitos, e que guardam o sono de seus olhos claros de outra cor que não sei como definir, e afinal seus cabelos avermelhados displicentemente caídos sobre sua testa. Ao lado, sobre o criado mudo, seus óculos de hastes negras, e abaixo no chão sua saia pela qual eu entrevi o começo de suas coxas.
Mas não gosto tanto dela assim, e estou quase certo de que não voltarei a pensar nela tanto como agora, e que na verdade nada disso, nem ela, nem esta cama decadente, estas roupas no chão, estes quarto com paredes mofadas, nem os carros singrando o breu da noite sem estrelas lá fora, nem os quatro minutos que eu tenho para escrever um conto, nada disso faz sentido. Eu ouço o primeiro pássaro do dia, que nada canta que já não tenha cantado antes, nada que eu já não tenha ouvido antes.
Ela desperta e me olha em silêncio, com aquele olhar vazio e cinzento de um despertar, à quase-morte da primeira hora. Eu noto que a mancha de mofo me parece mais verde agora. Então eu quase desisto de pensar no maldito sentido disto tudo, do que é real ou não, afinal. Desisto de pensar sobre o tempo. Penso apenas que tenho um minuto para escrever um conto, mas que talvez seja tarde demais. Resolvo amanhecer.

3ª Carta a Glon

Confuso Glon,
Quase que obrigo-me a escrever pois sei que precisas de uma carta minha tanto quando eu preciso escrevê-la. Sua última carta me fez ficar preocupado com o seu estado, mas tenho certeza de que você entende tão bem quanto eu que a espécie de confusões que você me cita são do pior tipo: pessoais e internas. Para estas, meu caro, não há remédio ou ajuda de outrem, somos abandonados à própria sorte e cabe a nós serenarmos os fantasmas que nos acompanham e atormentam. Tudo o que posso fazer é desejar-te sorte, ainda que eu tenha total certeza de que sua sabedoria e razão acabarão por prevalecer.
Sei bem que ando ausente, e peço que me desculpe. Fico muito contente, embora docemente espantado com os volteios da vida, de que agora ocupes um cargo na minha querida biblioteca. É algo mais que nos une neste mundo, bom amigo.
Pois bem, também eu não estou mais no mesmo lugar. Depois do envio de minha última carta, pouco tempo durou meu letárgico período de quase amor. Como você ironicamente notara, eu adentrei despropositadamente no território das amazonas. Aquela que me acompanhava era uma delas, renegada. Renegada sim, porém ainda servil a elas e a seu sistema. Certa manhã, jazíamos em nossa clareira após o desjejum, quando ouvimos galopes não muito longe. Ela ficou atenta como um animal que fareja, e me olhou nos olhos. Eu como que entendi sem conseguir precisar o quê. Correu até a caverna, apanhou sua lança e prostou-se a meu lado. Em poucos instantes, eu me vi frente a frente com cinco amazonas, a líder em um cavalo negro um pouco à frente, e mais quatro mulheres montando cavalos baios logo atrás, uma ao lado da outra. Devo admitir que foi uma cena impressionante. Todas trajavam saias e corpetes de couro, repletas de adornos de prata e bronze. A líder usava um diadema com uma safira incrustada, e tinha olhos da mesma cor da gema. Também levava no alforje uma espada embainhada, todas as outras traziam lanças. Nenhuma palavra foi trocada entre nenhuma delas. Pelo o que eu notei, não havia mesmo necessidade. As quatro amazonas fizeram um círculo ao meu redor, e ainda sobre seus cavalos, percorreram todo o círculo, para que tivessem uma visão completa de minha figura. Retesei-me sobre meus pés e não mostrei intenção de nenhum movimento. A líder também não se moveu. As outras retornaram para detrás dela. A líder desviou seu olhar de mim para minha companheira, firmemente, porém sem esboçar qualquer expressão. Olhou rapidamente uma última vez para mim e deu meia volta, indo até onde começavam as árvores. Três de suas asseclas a acompanharam, e uma ficou esperando. Foi quando eu tive certeza de que seria só de novo.
E então Ela andou lentamente metade do caminho entre mim e a amazona, e se virou. Olhou a caverna, a clareira, o vale lá embaixo, as nuvens que se formavam e um bem-te-vi que riscou o céu atrás de mim, e então ela olhou pra mim, e olhou todas estas coisas com o mesmo olhar. Não de pesar, nem de despedida, nem de dor, nem de alívio, nem de quase nada. Acho que ela só quis guardar uma última visão de um trecho de sua vida.
Quando ela se foi, me senti mais cansado do que só. Quase alívio. Quase dor. Mas no final, foi como sempre é: indiferente.


Permaneci mais poucos dias na caverna. Continuar lá seria como lustrar os anéis de uma mão amputada. Não me senti triste, nada brusco foi modificado em mim. Apenas senti que parte de mim desistiu de algo que não sei o quê.

Hoje te escrevo da Grande Cidade. Quero pensar que é temporário. Trabalho na principal distribuidora de peixes ao lado do porto. Meu trabalho é maquinal e consiste em cortar cabeças de peixe o dia todo. Me permite uma vaga na pensão de um velho veterano de guerra cujo nome eu desconheço, todos o chamam simplesmente de tenente. Convivo com mulheres da vida e homens amargos com tatuagens no braço, caras cinzentas e algum ouro nos dentes. Não sei como, mas espalhou-se sobre mim uma certa fama de literato. Por conta disso, diversas pessoas vêm a mim e pedem conselho para toda a sorte de problemas corriqueiros e dores de cotovelo e afins.
Mas você deve saber tanto quanto eu que não conseguirei ficar aqui por muito tempo. Só não sei ao certo ainda para onde vou, se é que isso alguma vez já fez diferença.

aguardo notícias suas.
Lupicínio Bielga

2ª Carta a Glon

Auspicioso Glon,

A grande surpresa que senti ao ter uma nova carta sua queimando em minhas mãos foi logo substituída por uma alegria serena quando terminei de lê-la. Fiquei em paz ao saber que tinha sobrevivido graciosamente a esta guerra absurda sem fim nem porquê, e que continuava com sua costumeira perspicácia a tomar conta de si.
Quanto a mim, não mais vivo na biblioteca. De onde eu estava, parti. A guerra já estava um pouco mais distante, apesar de sempre presente. A peste já tinha se ido, mas cada vestígio de casas queimadas era uma memória aterrorizadora. Não pra mim, mas para aqueles que amavam a outros.
Não sei ao certo quando decidi partir. Aliás, sei quando, mas como há muito tempo deixei de me preocupar com motivos, não sei ao certo por quê.
Certa manhã (eu estava evitando viver apenas de noite), eu estava sentado em frente aos destroços que me serviam de porta dos fundos da biblioteca, observando Pasternak trabalhar em nosso pomar. Logo à minha frente, ficava uma pequena amoreira que havia sido plantada há pouco mais de um ano, e já dava seus primeiros frutos. Um bem-te-vi pousou nela e bicou uma frutinha. Cantou a plenos pulmões, e não me olhou. Assim. Era a hora de mover-me.
Dei meus livros a Pasternak, que com lágrimas nos olhos (embora se esforçasse para contê-las), me desejou boa sorte e manifestou sua vontade de me ver de novo, em novos tempos. Desajeitado, me deu um abraço. Desajeitado também eu, abracei-o de volta, peguei a trouxa de frutas que ele havia preparado pra mim, e comecei a andar. Adentrei a densa floresta e lá andei por quatro dias. À noite, ouvia uivos. Mas não consegui perceber sequer o rastro de qualquer ser lupino. Ao final deste tempo, cheguei a um grande rio. Já havia visitado este rio em outros tempos, mas agora eu era outro, e também o era ele. Sabia que se seguisse para o Oeste, em seis dias chegaria à Grande Cidade. Mas você deve saber que nem de longe era o que eu intentava. Providenciei uma jangada com troncos de bananeiras, e ao terminar minha última noite ouvindo uivos, me deixei levar ao sabor da correnteza, para o Leste. Sempre para o Leste. Foi por este tempo que começava a perceber que talvez não estivesse tão sozinho quanto pensava.
Ao chegar à corredeira que banha o Vale dos Abestos, aportei. Deixei a jangada se precipitar água abaixo, e desci a encosta caminhando. Pesquei alguns peixes, e os comi junto com alguns frutos que colhi. Já se passavam oito dias desde que eu havia deixado a Vila. Terminada a refeição, cochilei à beira do rio. Acordei sobressaltado com alguns ruídos surdos na pequena mata ao longe. Lancei mão da tosca lança que havia feito enquanto estava na jangada, um pouco como precaução, um pouco para passar o tempo enquanto singrava as águas turvas. Inspecionei o local, mas o que quer que fosse, já não podia ou não queria ser descoberto. No entanto, encontrei algo. Uma espécie de pulseira, de pano rústico verde musgo, e preso a este pano, bem no centro, havia uma pequena placa de cobre onde estava forjada uma rosa aberta. Guardei o pequeno souvenir e prossegui.
Ao anoitecer, eu cheguei à base da Grande Colina. Começou a chover, e eu vi uma marta saindo de um arbusto, e se escondendo nas pequenas pedras ao pé da montanha. Tentei caçá-la, pois daria um razoável jantar e eu teria boa pele pra quando o frio chegasse, mas o pequeno animal foi mais esperto que eu, e conseguiu fugir colina acima, enquanto eu machucava meus joelhos e desistia. Era quase possível perceber alguém rindo, pois fora patética a minha atuação. A chuva tornara-se mais forte, e eu decidi subir um pouco a montanha, para me abrigar em baixo de um pequeno platô que surgia nas pedras. Assim o fiz e esperei. O abrigo permitia-me ficar de pé e guardar minhas coisas no seco. Assim fiquei, observando a chuva e ouvindo as pedras.
E então ela surgiu. Havia esperado o momento certo para se apresentar, depois de quase dez dias seguindo meus passos. Prostrou-se à minha frente, e pude afinal olhá-la. Seus cabelos claros e ligeiramente desgrenhados escorriam encharcados por seus ombros nus e chegavam até o meio de suas costas. . Vestia uma túnica rústica, cor de ocre, acinturada por algumas tiras de couro que estavam amarradas e pendiam em seu flanco esquerdo. Calçava sandálias de couro, com tiras amarradas até a metade das canelas, e deixou cair uma pequena bolsa de estopa que levava. Segurava uma lança ainda manchada de sangue, e presa a ela estava a marta que havia me escapado momentos antes, com o olhar perdido e vítreo das coisas recém mortas. Seus olhos acinzentados como os de um velho lobo me olhavam como se vissem através de mim, todo o mundo por detrás. Disse-me apenas:
- Preciso de um amigo.
Seus olhos deixaram de focalizar o Nada e encontraram os meus. Eu nada disse. Entreguei-lhe a pulseira que havia encontrado naquela tarde, entre as árvores. Ela a tomou nas mãos, desprendeu a rosa de cobre do pano, e o rasgou longitudinalmente, fazendo-o em duas partes. Amarrou uma das metades em meu pulso esquerdo, prendeu novamente a rosa no pedaço restante, e o amarrou também em seu pulso esquerdo. Sentou embaixo do platô, em silêncio. Choveu o resto da noite.
Na manhã seguinte, escalamos o restante da montanha, quase mudos, até chegarmos onde eu esperava chegar. Quase no topo desta colina, existe uma pequena clareira, e uma caverna. Alcançamos o lugar ao cair da tarde, e ela fez uma fogueira, para afugentar possíveis predadores, nos aquecer e iluminar a entrada da caverna. Esta caverna era como um túnel largo, e havia algumas câmaras dentro deste túnel. Em uma destas câmaras, com o auxílio de uma tocha, encontramos nas paredes alguns desenhos rupestres de baleias. Baleias e Homens. Embaixo destes desenhos, estava escrito em dialeto arcaico, que consegui a custo decifrar:
"Ninguém parte por completo”.



É aqui que tenho estado desde então, caro Glon. Confesso que por enquanto me agrada esta serena vida que levo. Ela me faz companhia, me ajuda na caça e nas pequenas colheitas. Quase nunca falamos sobre nada. Não sei seu nome, ela tampouco sabe o meu. Não sei nada sobre ela, e ela sabe ainda menos sobre mim. Mas quase a entendo, e acredito que ela quase me ama. Nas noites daqui, ela me permite conhecê-la e dormimos juntos. Quando o sol nasce, observamos o grande astro estendendo seus braços luminosos sobre o vale e quase rimos de escárnio dos homens e suas guerras. Seu olhar cinzento ainda me atravessa, perscrutando o Nada através de mim, ou dentro de mim. Gosto de vê-la correndo, e gosto de ver o dia refletido em seus olhos. E quando chove, ela me estende a mão.
Mas eu entendo, fiel Glon, que os tempos são cíclicos. Há muito passei da idade de acreditar em algo definitivo. Chegará o momento de descer esta doce colina, como também chegará o momento em que nos veremos novamente, meu saudoso amigo. Mas fico feliz em poder constatar que ainda há rosas que me emudeçam, e espinhos que me ferem. Me torna vivo saber que posso sangrar a cada dia.
Mande-me notícias suas.


Esteja em paz,

Lupicínio Bielga

1ª Carta a Glon (ou Sobre Baleias e Lobos)

Estimado Glon,

Antes de qualquer possível elucidação sobre o mistério que me propõe, devo explicar tamanha demora para te responder. Muito aconteceu neste intervalo.
Não mais vivo no almoxarifado, me desloquei para outro prédio, a Biblioteca, onde em breve também não mais estarei. Deixa-me explicar.

Antes de tudo veio a guerra. Imperceptível no começo, inegável depois, caótica, urgente e absoluta por fim. Talvez por ter sido indiferente a ela, ela não me tocou mais do que superficialmente. Aos primeiros estrondos próximos, fui obrigado a deixar o almoxarifado. Vaguei, incerto de onde queria ou deveria chegar, em meio à multidão que fugia desencontrada. Desencontrado também eu, entrei na Biblioteca, a esta altura deserta. Descobri uma pequena espécie de porão, que me serve de casa agora. Por conta de um estratagema, bloqueei a porta deste porão com entulhos, de forma que ninguém até agora sabe que vivo aqui. Nos fundos deste porão, que é também a parte de trás do prédio, fiz um pequeno buraco, que dá para um campo aberto, agora também já coberto de destroços e deserto, vestígio do que deveria ter sido uma praça ou algo que o valha. Mais à frente, havia um pomar destruído. Alguns destroços mais serviram para proteger esta entrada dos fundos, então acredito que estou seguro, na medida do possível. Pois foi dentro deste lugar que ouvi os últimos ruídos dos bombardeios. Dois terços de seu telhado foram destruídos, de forma que tive um céu estrelado, quando me aventurava a caminhar pelo lugar.
Vieram os soldados, ao mesmo tempo solenes e delinqüentes. Eu havia escondido comigo os livros que julguei mais dignos de serem conservados, e desta forma eles não causaram grandes estragos. Com o telhado avariado, o lugar não lhes servia para qualquer tipo de base de operações. Então, queimaram alguns livros por farra, usaram o lugar para cometerem alguns estupros, e foi só. Não chegaram a me descobrir. Como a cidade também já não os importava tanto, logo se foram, não sem antes deixarem por trás de si o rastro do homem.
Depois, veio a peste. Talvez por também ter sido indiferente à ela, ela não chegou a me tocar. A peste matou quase todos os poucos que haviam permanecido com a Guerra, e terminou por afugentar aqueles que ela não abraçou. Estes últimos queimaram a parte aberta da Biblioteca, mas por sorte, nada atingiu meu pequeno refúgio.
Fiquei só por um tempo. Não tinha do que reclamar, afinal, sempre o tinha sido. Sobrevivia às custas do que tinha sobrado do pomar, e havia uma floresta a poucos quilômetros, então podia caçar, o que me garantia sustento e algum afazer. Mas não havia lobos por lá. Tampouco baleias.
Algumas pessoas foram retornando à cidade, e eu me tornei mais recluso. Não sei em que ponto de minha vida a convivência social de quase qualquer tipo se tornou insuportável. Fiz um amigo: Pasternak. Não me pergunte sobre a estranheza deste nome, talvez sua mãe tenha se emocionado com Dr. Jivago. Ele foi um dos primeiros a aparecer na cidade. Construiu uma cabana atrás do pomar. Nos conhecemos de uma maneira engraçada: Eu costumava trabalhar no pomar apenas à noite (passei a evitar a luz do dia), e passados dois dias desde sua chegada à cidade, fui notando que alguém mais trabalhava no pomar, além de mim. Em suma, nós dois o cultivávamos, cada um em um horário. Na quarta noite, ele me esperou acordado. Como ele é jovem, e trabalha bem, entramos em comum acordo que de ambos dividiríamos o trabalho e seus frutos. Acredito que ele seja o único que soube que eu vivia aqui. Aliás, foi ele também que me trouxe sua carta, esquecida no correio desde os tempos pacíficos.
Sobre Baleias e Lobos? Sim...Interessantíssima a sua carta. Pessoalmente, acredito que meu lobo, outrora belo e soberbo, esteja agora desacreditado e exausto, afastou-se da matilha, aceita a morte e a aguarda. Velho lobo. Sinto-me mais como a baleia, serena e indiferente. Seremos capazes de suportar seu silêncio, acaso nos encontrássemos dentro de sua barriga? O que teria sido pior para Jonas, afinal, ter ido à Nínive enfrentar a maldade, ou permanecer dentro da baleia e enfrentar a Deus, e pior, a si mesmo?
Deixe-me contar uma coisa, meu bom amigo Glon: Eu já fui louco. Dentro de meu universo particular de sandices, uma meta que eu tinha era a de olhar um lobo nos olhos sem temê-lo. Por quê, você deve se perguntar afinal? Eu também não sei ao certo. Pra mim, este feito seria como uma consumação em aceitar meu Steppenwolf, ou seja, o cúmulo da coragem, que jamais tive a oportunidade de realizar. Seria a própria aceitação de mim mesmo. Quantos conseguem fazer isto? O que aconteceria se eu o temesse no momento derradeiro? Não sou capaz de imaginar.
Agora estou velho, e já não faz diferença se estou louco ou não. Daqui onde escrevo (chamo este lugar de Ponto de Fuga), não há tempo, espaço, ou remorso. Não há nada, só este limbo aminiótico, e creio eu, deve ser uma situação parecida com a de estar no interior da baleia. O que sua carta me fez pensar foi isto. Talvez lobos e baleias sejam estágios que devamos percorrer, neste espetáculo abjeto a que chamamos Vida. Não sei ao certo se um é conseqüente ao outro, ou se conseguimos nos situar em algum deles, dependendo de quem somos. (aqui no Ponto de Fuga sei cada vez menos coisas). O que sei é que lobos são belos, e absolutos. Tens algo mais a dizer, caro Glon?


meus sinceros cumprimentos,
Lupicínio Bielga

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

No dia em que te conheci, uma borboleta amarela pousou duas vezes sobre minha cabeça

No dia em que te conheci,
uma borboleta amarela pousou duas vezes sobre minha cabeça,
enquanto eu segurava três garrafas de vinho na fila do supermercado.

No dia em que uma borboleta amarela pousou duas vezes sobre minha cabeça, era dia de eclipse lunar na noite púrpura de minha cidade.

Hoje vou me embriagar em teu nome. Arejar as frestas, enfeitar os cantos, vestir os guizos, rir tantos risos de tantas festas.

Tu vestias o sol. Eu, que sou teu guia, te seguia.

Eras lua negra, eras lua branca, a franca paz do desassossego, eras secular, eras meu lugar e todo o meu medo.

Eu era um tanto frio e distante, planeta errante, antes da borboleta amarela pousar duas vezes sobre minha cabeça, enquanto eu segurava três garrafas de vinho na fila do supermercado.

Eu vestia o luar. Eu, que sou teu guia, me perdia.