sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

3ª Carta a Glon

Confuso Glon,
Quase que obrigo-me a escrever pois sei que precisas de uma carta minha tanto quando eu preciso escrevê-la. Sua última carta me fez ficar preocupado com o seu estado, mas tenho certeza de que você entende tão bem quanto eu que a espécie de confusões que você me cita são do pior tipo: pessoais e internas. Para estas, meu caro, não há remédio ou ajuda de outrem, somos abandonados à própria sorte e cabe a nós serenarmos os fantasmas que nos acompanham e atormentam. Tudo o que posso fazer é desejar-te sorte, ainda que eu tenha total certeza de que sua sabedoria e razão acabarão por prevalecer.
Sei bem que ando ausente, e peço que me desculpe. Fico muito contente, embora docemente espantado com os volteios da vida, de que agora ocupes um cargo na minha querida biblioteca. É algo mais que nos une neste mundo, bom amigo.
Pois bem, também eu não estou mais no mesmo lugar. Depois do envio de minha última carta, pouco tempo durou meu letárgico período de quase amor. Como você ironicamente notara, eu adentrei despropositadamente no território das amazonas. Aquela que me acompanhava era uma delas, renegada. Renegada sim, porém ainda servil a elas e a seu sistema. Certa manhã, jazíamos em nossa clareira após o desjejum, quando ouvimos galopes não muito longe. Ela ficou atenta como um animal que fareja, e me olhou nos olhos. Eu como que entendi sem conseguir precisar o quê. Correu até a caverna, apanhou sua lança e prostou-se a meu lado. Em poucos instantes, eu me vi frente a frente com cinco amazonas, a líder em um cavalo negro um pouco à frente, e mais quatro mulheres montando cavalos baios logo atrás, uma ao lado da outra. Devo admitir que foi uma cena impressionante. Todas trajavam saias e corpetes de couro, repletas de adornos de prata e bronze. A líder usava um diadema com uma safira incrustada, e tinha olhos da mesma cor da gema. Também levava no alforje uma espada embainhada, todas as outras traziam lanças. Nenhuma palavra foi trocada entre nenhuma delas. Pelo o que eu notei, não havia mesmo necessidade. As quatro amazonas fizeram um círculo ao meu redor, e ainda sobre seus cavalos, percorreram todo o círculo, para que tivessem uma visão completa de minha figura. Retesei-me sobre meus pés e não mostrei intenção de nenhum movimento. A líder também não se moveu. As outras retornaram para detrás dela. A líder desviou seu olhar de mim para minha companheira, firmemente, porém sem esboçar qualquer expressão. Olhou rapidamente uma última vez para mim e deu meia volta, indo até onde começavam as árvores. Três de suas asseclas a acompanharam, e uma ficou esperando. Foi quando eu tive certeza de que seria só de novo.
E então Ela andou lentamente metade do caminho entre mim e a amazona, e se virou. Olhou a caverna, a clareira, o vale lá embaixo, as nuvens que se formavam e um bem-te-vi que riscou o céu atrás de mim, e então ela olhou pra mim, e olhou todas estas coisas com o mesmo olhar. Não de pesar, nem de despedida, nem de dor, nem de alívio, nem de quase nada. Acho que ela só quis guardar uma última visão de um trecho de sua vida.
Quando ela se foi, me senti mais cansado do que só. Quase alívio. Quase dor. Mas no final, foi como sempre é: indiferente.


Permaneci mais poucos dias na caverna. Continuar lá seria como lustrar os anéis de uma mão amputada. Não me senti triste, nada brusco foi modificado em mim. Apenas senti que parte de mim desistiu de algo que não sei o quê.

Hoje te escrevo da Grande Cidade. Quero pensar que é temporário. Trabalho na principal distribuidora de peixes ao lado do porto. Meu trabalho é maquinal e consiste em cortar cabeças de peixe o dia todo. Me permite uma vaga na pensão de um velho veterano de guerra cujo nome eu desconheço, todos o chamam simplesmente de tenente. Convivo com mulheres da vida e homens amargos com tatuagens no braço, caras cinzentas e algum ouro nos dentes. Não sei como, mas espalhou-se sobre mim uma certa fama de literato. Por conta disso, diversas pessoas vêm a mim e pedem conselho para toda a sorte de problemas corriqueiros e dores de cotovelo e afins.
Mas você deve saber tanto quanto eu que não conseguirei ficar aqui por muito tempo. Só não sei ao certo ainda para onde vou, se é que isso alguma vez já fez diferença.

aguardo notícias suas.
Lupicínio Bielga

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