sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Meia Hora

Ela dorme enfim. Ela dorme e eu tenho meia hora para escrever um conto. Sonhei que alguém me ensinava um provérbio russo. Quem me ensinava, não me lembro. Tampouco me lembro do provérbio. Sei apenas que era russo, e na mesma frase havia as palavras trigo e prato. Existe trigo na Rússia? Sei tão pouco sobre a Rússia.
Ela dorme e em algum canto de mim repousa meu desejo adormecido. Estou ao lado dela nesta cama puída (gostaria de dizer cama de campanha, pois sempre gostei das camas de campanha, mesmo sem jamais ter visto alguma. Mas não é o caso). Suas pernas alvas estão descobertas. Passeio meus olhos pelas suas pernas, das unhas do pé pintadas de uma cor escura que eu não sei qual é, até seus joelhos. Deus, como gosto destes joelhos. O lençol amarelado ainda revela o começo de suas coxas. Esta foi a primeira coisa que eu reparei nela, quando comecei a enxergá-la realmente. Tenho agora vinte minutos. A cidade ainda existe ruidosamente lá fora, vejo as luzes dos carros como vagalumes no breu da noite sem estrelas. Olhos minhas roupas gastas na cadeira e penso que daqui a pouco precisarei tomar café. Paro, olho para a mancha escura de mofo na parede e sinto passar o tempo. Não da forma como passava antes, mas como sangue pingando de um animal recém alvejado. Lenta e eternamente. Não há como segurá-lo. Talvez eu nem queira, penso eu. Afinal, por quê me preocupo tanto com o tempo? Por quê insisto em tentar segurar o tempo, se eu estou nu neste quarto, se ela dorme ao meu lado, se tenho doze minutos para escrever um conto, se a cidade lateja lá fora, e eu preciso tomar café, e ir trabalhar?
Tudo parece simples, e então novamente a olho, e tenho certeza de que o é. E se não for, deve ser. Seu pescoço inclinado repousa sobre o travesseiro, sua pequena e linda boca treme levemente quando ela expira, seu nariz alongado, suas pálpebras com cílios que me parecem perfeitos, e que guardam o sono de seus olhos claros de outra cor que não sei como definir, e afinal seus cabelos avermelhados displicentemente caídos sobre sua testa. Ao lado, sobre o criado mudo, seus óculos de hastes negras, e abaixo no chão sua saia pela qual eu entrevi o começo de suas coxas.
Mas não gosto tanto dela assim, e estou quase certo de que não voltarei a pensar nela tanto como agora, e que na verdade nada disso, nem ela, nem esta cama decadente, estas roupas no chão, estes quarto com paredes mofadas, nem os carros singrando o breu da noite sem estrelas lá fora, nem os quatro minutos que eu tenho para escrever um conto, nada disso faz sentido. Eu ouço o primeiro pássaro do dia, que nada canta que já não tenha cantado antes, nada que eu já não tenha ouvido antes.
Ela desperta e me olha em silêncio, com aquele olhar vazio e cinzento de um despertar, à quase-morte da primeira hora. Eu noto que a mancha de mofo me parece mais verde agora. Então eu quase desisto de pensar no maldito sentido disto tudo, do que é real ou não, afinal. Desisto de pensar sobre o tempo. Penso apenas que tenho um minuto para escrever um conto, mas que talvez seja tarde demais. Resolvo amanhecer.

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