sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

2ª Carta a Glon

Auspicioso Glon,

A grande surpresa que senti ao ter uma nova carta sua queimando em minhas mãos foi logo substituída por uma alegria serena quando terminei de lê-la. Fiquei em paz ao saber que tinha sobrevivido graciosamente a esta guerra absurda sem fim nem porquê, e que continuava com sua costumeira perspicácia a tomar conta de si.
Quanto a mim, não mais vivo na biblioteca. De onde eu estava, parti. A guerra já estava um pouco mais distante, apesar de sempre presente. A peste já tinha se ido, mas cada vestígio de casas queimadas era uma memória aterrorizadora. Não pra mim, mas para aqueles que amavam a outros.
Não sei ao certo quando decidi partir. Aliás, sei quando, mas como há muito tempo deixei de me preocupar com motivos, não sei ao certo por quê.
Certa manhã (eu estava evitando viver apenas de noite), eu estava sentado em frente aos destroços que me serviam de porta dos fundos da biblioteca, observando Pasternak trabalhar em nosso pomar. Logo à minha frente, ficava uma pequena amoreira que havia sido plantada há pouco mais de um ano, e já dava seus primeiros frutos. Um bem-te-vi pousou nela e bicou uma frutinha. Cantou a plenos pulmões, e não me olhou. Assim. Era a hora de mover-me.
Dei meus livros a Pasternak, que com lágrimas nos olhos (embora se esforçasse para contê-las), me desejou boa sorte e manifestou sua vontade de me ver de novo, em novos tempos. Desajeitado, me deu um abraço. Desajeitado também eu, abracei-o de volta, peguei a trouxa de frutas que ele havia preparado pra mim, e comecei a andar. Adentrei a densa floresta e lá andei por quatro dias. À noite, ouvia uivos. Mas não consegui perceber sequer o rastro de qualquer ser lupino. Ao final deste tempo, cheguei a um grande rio. Já havia visitado este rio em outros tempos, mas agora eu era outro, e também o era ele. Sabia que se seguisse para o Oeste, em seis dias chegaria à Grande Cidade. Mas você deve saber que nem de longe era o que eu intentava. Providenciei uma jangada com troncos de bananeiras, e ao terminar minha última noite ouvindo uivos, me deixei levar ao sabor da correnteza, para o Leste. Sempre para o Leste. Foi por este tempo que começava a perceber que talvez não estivesse tão sozinho quanto pensava.
Ao chegar à corredeira que banha o Vale dos Abestos, aportei. Deixei a jangada se precipitar água abaixo, e desci a encosta caminhando. Pesquei alguns peixes, e os comi junto com alguns frutos que colhi. Já se passavam oito dias desde que eu havia deixado a Vila. Terminada a refeição, cochilei à beira do rio. Acordei sobressaltado com alguns ruídos surdos na pequena mata ao longe. Lancei mão da tosca lança que havia feito enquanto estava na jangada, um pouco como precaução, um pouco para passar o tempo enquanto singrava as águas turvas. Inspecionei o local, mas o que quer que fosse, já não podia ou não queria ser descoberto. No entanto, encontrei algo. Uma espécie de pulseira, de pano rústico verde musgo, e preso a este pano, bem no centro, havia uma pequena placa de cobre onde estava forjada uma rosa aberta. Guardei o pequeno souvenir e prossegui.
Ao anoitecer, eu cheguei à base da Grande Colina. Começou a chover, e eu vi uma marta saindo de um arbusto, e se escondendo nas pequenas pedras ao pé da montanha. Tentei caçá-la, pois daria um razoável jantar e eu teria boa pele pra quando o frio chegasse, mas o pequeno animal foi mais esperto que eu, e conseguiu fugir colina acima, enquanto eu machucava meus joelhos e desistia. Era quase possível perceber alguém rindo, pois fora patética a minha atuação. A chuva tornara-se mais forte, e eu decidi subir um pouco a montanha, para me abrigar em baixo de um pequeno platô que surgia nas pedras. Assim o fiz e esperei. O abrigo permitia-me ficar de pé e guardar minhas coisas no seco. Assim fiquei, observando a chuva e ouvindo as pedras.
E então ela surgiu. Havia esperado o momento certo para se apresentar, depois de quase dez dias seguindo meus passos. Prostrou-se à minha frente, e pude afinal olhá-la. Seus cabelos claros e ligeiramente desgrenhados escorriam encharcados por seus ombros nus e chegavam até o meio de suas costas. . Vestia uma túnica rústica, cor de ocre, acinturada por algumas tiras de couro que estavam amarradas e pendiam em seu flanco esquerdo. Calçava sandálias de couro, com tiras amarradas até a metade das canelas, e deixou cair uma pequena bolsa de estopa que levava. Segurava uma lança ainda manchada de sangue, e presa a ela estava a marta que havia me escapado momentos antes, com o olhar perdido e vítreo das coisas recém mortas. Seus olhos acinzentados como os de um velho lobo me olhavam como se vissem através de mim, todo o mundo por detrás. Disse-me apenas:
- Preciso de um amigo.
Seus olhos deixaram de focalizar o Nada e encontraram os meus. Eu nada disse. Entreguei-lhe a pulseira que havia encontrado naquela tarde, entre as árvores. Ela a tomou nas mãos, desprendeu a rosa de cobre do pano, e o rasgou longitudinalmente, fazendo-o em duas partes. Amarrou uma das metades em meu pulso esquerdo, prendeu novamente a rosa no pedaço restante, e o amarrou também em seu pulso esquerdo. Sentou embaixo do platô, em silêncio. Choveu o resto da noite.
Na manhã seguinte, escalamos o restante da montanha, quase mudos, até chegarmos onde eu esperava chegar. Quase no topo desta colina, existe uma pequena clareira, e uma caverna. Alcançamos o lugar ao cair da tarde, e ela fez uma fogueira, para afugentar possíveis predadores, nos aquecer e iluminar a entrada da caverna. Esta caverna era como um túnel largo, e havia algumas câmaras dentro deste túnel. Em uma destas câmaras, com o auxílio de uma tocha, encontramos nas paredes alguns desenhos rupestres de baleias. Baleias e Homens. Embaixo destes desenhos, estava escrito em dialeto arcaico, que consegui a custo decifrar:
"Ninguém parte por completo”.



É aqui que tenho estado desde então, caro Glon. Confesso que por enquanto me agrada esta serena vida que levo. Ela me faz companhia, me ajuda na caça e nas pequenas colheitas. Quase nunca falamos sobre nada. Não sei seu nome, ela tampouco sabe o meu. Não sei nada sobre ela, e ela sabe ainda menos sobre mim. Mas quase a entendo, e acredito que ela quase me ama. Nas noites daqui, ela me permite conhecê-la e dormimos juntos. Quando o sol nasce, observamos o grande astro estendendo seus braços luminosos sobre o vale e quase rimos de escárnio dos homens e suas guerras. Seu olhar cinzento ainda me atravessa, perscrutando o Nada através de mim, ou dentro de mim. Gosto de vê-la correndo, e gosto de ver o dia refletido em seus olhos. E quando chove, ela me estende a mão.
Mas eu entendo, fiel Glon, que os tempos são cíclicos. Há muito passei da idade de acreditar em algo definitivo. Chegará o momento de descer esta doce colina, como também chegará o momento em que nos veremos novamente, meu saudoso amigo. Mas fico feliz em poder constatar que ainda há rosas que me emudeçam, e espinhos que me ferem. Me torna vivo saber que posso sangrar a cada dia.
Mande-me notícias suas.


Esteja em paz,

Lupicínio Bielga

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