sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

1ª Carta a Glon (ou Sobre Baleias e Lobos)

Estimado Glon,

Antes de qualquer possível elucidação sobre o mistério que me propõe, devo explicar tamanha demora para te responder. Muito aconteceu neste intervalo.
Não mais vivo no almoxarifado, me desloquei para outro prédio, a Biblioteca, onde em breve também não mais estarei. Deixa-me explicar.

Antes de tudo veio a guerra. Imperceptível no começo, inegável depois, caótica, urgente e absoluta por fim. Talvez por ter sido indiferente a ela, ela não me tocou mais do que superficialmente. Aos primeiros estrondos próximos, fui obrigado a deixar o almoxarifado. Vaguei, incerto de onde queria ou deveria chegar, em meio à multidão que fugia desencontrada. Desencontrado também eu, entrei na Biblioteca, a esta altura deserta. Descobri uma pequena espécie de porão, que me serve de casa agora. Por conta de um estratagema, bloqueei a porta deste porão com entulhos, de forma que ninguém até agora sabe que vivo aqui. Nos fundos deste porão, que é também a parte de trás do prédio, fiz um pequeno buraco, que dá para um campo aberto, agora também já coberto de destroços e deserto, vestígio do que deveria ter sido uma praça ou algo que o valha. Mais à frente, havia um pomar destruído. Alguns destroços mais serviram para proteger esta entrada dos fundos, então acredito que estou seguro, na medida do possível. Pois foi dentro deste lugar que ouvi os últimos ruídos dos bombardeios. Dois terços de seu telhado foram destruídos, de forma que tive um céu estrelado, quando me aventurava a caminhar pelo lugar.
Vieram os soldados, ao mesmo tempo solenes e delinqüentes. Eu havia escondido comigo os livros que julguei mais dignos de serem conservados, e desta forma eles não causaram grandes estragos. Com o telhado avariado, o lugar não lhes servia para qualquer tipo de base de operações. Então, queimaram alguns livros por farra, usaram o lugar para cometerem alguns estupros, e foi só. Não chegaram a me descobrir. Como a cidade também já não os importava tanto, logo se foram, não sem antes deixarem por trás de si o rastro do homem.
Depois, veio a peste. Talvez por também ter sido indiferente à ela, ela não chegou a me tocar. A peste matou quase todos os poucos que haviam permanecido com a Guerra, e terminou por afugentar aqueles que ela não abraçou. Estes últimos queimaram a parte aberta da Biblioteca, mas por sorte, nada atingiu meu pequeno refúgio.
Fiquei só por um tempo. Não tinha do que reclamar, afinal, sempre o tinha sido. Sobrevivia às custas do que tinha sobrado do pomar, e havia uma floresta a poucos quilômetros, então podia caçar, o que me garantia sustento e algum afazer. Mas não havia lobos por lá. Tampouco baleias.
Algumas pessoas foram retornando à cidade, e eu me tornei mais recluso. Não sei em que ponto de minha vida a convivência social de quase qualquer tipo se tornou insuportável. Fiz um amigo: Pasternak. Não me pergunte sobre a estranheza deste nome, talvez sua mãe tenha se emocionado com Dr. Jivago. Ele foi um dos primeiros a aparecer na cidade. Construiu uma cabana atrás do pomar. Nos conhecemos de uma maneira engraçada: Eu costumava trabalhar no pomar apenas à noite (passei a evitar a luz do dia), e passados dois dias desde sua chegada à cidade, fui notando que alguém mais trabalhava no pomar, além de mim. Em suma, nós dois o cultivávamos, cada um em um horário. Na quarta noite, ele me esperou acordado. Como ele é jovem, e trabalha bem, entramos em comum acordo que de ambos dividiríamos o trabalho e seus frutos. Acredito que ele seja o único que soube que eu vivia aqui. Aliás, foi ele também que me trouxe sua carta, esquecida no correio desde os tempos pacíficos.
Sobre Baleias e Lobos? Sim...Interessantíssima a sua carta. Pessoalmente, acredito que meu lobo, outrora belo e soberbo, esteja agora desacreditado e exausto, afastou-se da matilha, aceita a morte e a aguarda. Velho lobo. Sinto-me mais como a baleia, serena e indiferente. Seremos capazes de suportar seu silêncio, acaso nos encontrássemos dentro de sua barriga? O que teria sido pior para Jonas, afinal, ter ido à Nínive enfrentar a maldade, ou permanecer dentro da baleia e enfrentar a Deus, e pior, a si mesmo?
Deixe-me contar uma coisa, meu bom amigo Glon: Eu já fui louco. Dentro de meu universo particular de sandices, uma meta que eu tinha era a de olhar um lobo nos olhos sem temê-lo. Por quê, você deve se perguntar afinal? Eu também não sei ao certo. Pra mim, este feito seria como uma consumação em aceitar meu Steppenwolf, ou seja, o cúmulo da coragem, que jamais tive a oportunidade de realizar. Seria a própria aceitação de mim mesmo. Quantos conseguem fazer isto? O que aconteceria se eu o temesse no momento derradeiro? Não sou capaz de imaginar.
Agora estou velho, e já não faz diferença se estou louco ou não. Daqui onde escrevo (chamo este lugar de Ponto de Fuga), não há tempo, espaço, ou remorso. Não há nada, só este limbo aminiótico, e creio eu, deve ser uma situação parecida com a de estar no interior da baleia. O que sua carta me fez pensar foi isto. Talvez lobos e baleias sejam estágios que devamos percorrer, neste espetáculo abjeto a que chamamos Vida. Não sei ao certo se um é conseqüente ao outro, ou se conseguimos nos situar em algum deles, dependendo de quem somos. (aqui no Ponto de Fuga sei cada vez menos coisas). O que sei é que lobos são belos, e absolutos. Tens algo mais a dizer, caro Glon?


meus sinceros cumprimentos,
Lupicínio Bielga

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