sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

All Star Branco

Não chovia, não era véspera de feriado, não era maio, o dia não estava assim tão bonito nem o céu tão azul. Nada de muito ruim tinha acontecido também. Dentro da aura densa e nebulosa em que me envolvo involuntariamente quando estou lá, não havia nada de tão diferente assim. E não que eu não soubesse ver, acredite, eu veria.

Lembro-me agora que talvez o dia estivesse ensolarado, lembro que meu olho doeu mais do que o costume quando eu abri a pesada porta de vidro num gesto calculadamente polido e desleixado. Lembro que a vi de soslaio, quase visão periférica, no quarto de segundo em que eu consigo olhar nos olhos de alguém, antes que meus olhos fujam assustados para o vago, o etéreo, o nada. Este quarto de visão me permitiu ver que ela me olhou também, por mais tempo que eu, e não que isso quisesse dizer alguma coisa, além de constatar que de fato eu olho muito pouco para qualquer pessoa. Ela estava de pé sobre o último dos quatro degraus, talvez fumasse, e conversava com alguém que eu não olhei. Quando estou dentro desta aura, ninguém parece ter rosto. Algo nela me pareceu familiar, pensei nisso durante um quarto de minuto, e depois me esqueci completamente. Nada aconteceu depois disso, não choveu sobre minha cabeça, eu não colhi nenhuma flor pelo caminho, não encontrei ninguém que não via há muito tempo, não atropelei nenhum cachorro, e nenhuma frase lida na multidão urbana me chamou a atenção.

Dali a cinco, talvez sete, talvez sete dias e meio, eu cruzei com ela novamente. Eu descia a escada e ela subia, ambos apressados. Lembrei do outro dia, e como havia esquecido, tive de recordar em um quarto de segundo onde a havia visto anteriormente, e de fato, havia qualquer coisa de familiar nela, mas ainda não foi só, qualquer coisa em mim tentou dar algum tipo de aviso, ou menos que isso, poderia dizer que algo lá dentro tremeu ou acordou, mas não foi pra tanto, no máximo alguma realmente leve reação química aconteceu, eu balbuciei qualquer coisa que pudesse ser ligeiramente agradável, nada mais saiu do que meio bom dia, e pelo quarto de segundo em que eu a olhei, percebi que ela também tentava dar um sorriso que acabou saindo tão bobo quanto o meu, mas no quarto degrau abaixo deste encontro eu já havia me esquecido de qualquer coisa.

E foi só, eu não tropecei nos degraus restantes, não achei nada perdido pelo caminho, não esbarrei em ninguém, meu celular não tocou, não havia nada escrito no banheiro ou em qualquer outro lugar que me chamasse a atenção.

Dali a dois, talvez três dias, era sexta feira. Era sexta feira, e não era nada além disso, eu não tinha planos grandiosos, não haviam festas ou encontros à vista, eu não viajaria, não tinha dentista marcado, nem livros pela metade. Era sexta feira e eu trabalhei até um pouco mais tarde, não porque realmente precisasse, não porque realmente quisesse, não porque fugisse, nem resistisse. E já era noite, e eu fui fumar um cigarro na salinha, também chamada fumódromo, mas eu não gosto deste nome.

Abri a porta e a salinha estava escura, havia mais uma menina lá, que começou a puxar conversa comigo, e eu rebatia com respostas vagas e cômodas, mas que a satisfaziam. Não era uma noite tão bela assim.

Então ela entrou. Ela abriu a porta, e algo em mim se paralisou por um quarto de segundo, ela sussurrou uma saudação qualquer, eu sussurrei outra ainda mais baixo, a outra garota continuou tagarelando, e ela percorreu todo o diâmetro da sala um tanto cabisbaixa, tímida, até sentar-se no sofá em frente à porta, a noventa graus de onde eu estava sentado. Poderia dizer que comecei a ver as coisas em câmera lenta, mas seria dramático demais. Ela estava de cabelos soltos, pretos e compridos até passarem um pouco os ombros, blazer cinza risca de giz, calça jeans e all star branco. Como estava escuro, e como eu não queria, não sei que cor eram seus olhos, mas os imagino escuros agora. Ela não era propriamente bonita, não saberia defini-la, mas se eu tivesse de dizer algo, talvez pudesse dizer simplesmente que ela cabia em mim. Eu também poderia dizer que foi o blazer, a maneira tímida como entrou, o sussurro indecifrável na tentativa de parecer simpática, ou o free ou marboro light que ela levava na mão esquerda, a forma elegante como acendeu o cigarro, ou até mesmo o conjunto disto tudo, mas a quem eu estaria enganando? Foi isto tudo sim, é claro, mas foi isto tudo e o all star branco. Como ficar indiferente à alguém que entra desta forma numa sexta feira que não tem nada especial, usando um all star branco?
Então eu entendi. Então eu vi tudo. Até por que, desde que aquela porta tinha se aberto, eu já não ouvia nada do que a outra garota dizia. Eu soube quando ela acendeu o cigarro, que eu conseguiria dizer qualquer coisa de simpático, e confirmar a atenção dela que já estava em mim desde o dia do quarto degrau de fora, porque mesmo com toda esta aura cinza e densa, eu vejo. Eu soube que conseguiria manter uma conversa agradável, e que conseguiria parecer interessante mesmo sem inventar nada, mesmo sem ocultar nada. Eu soube que arrancaria o nome dela ainda naquela sala, que descobriria se ela era nova por lá (talvez daí viesse parte da timidez), que necessitaria de muitas e variadas informações da área onde ela trabalhava e que depois eu descobriria amigos em comum dentro do trabalho, que conseguiria forjar encontros, e combinar almoços casuais em turma, construir uma pseudo-amizade apenas para que descobríssemos mais e mais interesses em comum, e o que ela não gostasse em mim não a amedrontaria, pelo contrário, a atrairia, e que ela quereria me conhecer mais e mais, e eu a ela, e que eu não deixaria isto me amedrontar, que acabaríamos ficando juntos em algum happy hour, ou evento de trabalho em que sempre tem bebida demais, algum aniversário de algum amigo em comum.

E que isto seria maravilhoso, como se tivéssemos sido preparados para isso de alguma forma estranha, e nosso beijo seria exato, sem sobrar nem faltar, de duração perfeita. Que os dedos dela se encaixariam perfeitamente entre meus dedos, que sua cintura encontraria a medida exata das minhas mãos, que seu cheiro seria meu porto seguro, e meu peito o porto dela, que meu ombro esquerdo seria o apoio perfeito para sua cabeça.

Sabia que isto nos deixaria confusos, que acabaríamos ficando outras vezes, até que trocássemos e-mails perigosos durante o dia, e que o messenger seria meu forte aliado, e que eu conseguiria habilmente traçar uma teia onde afinal nem eu nem ela iríamos mais querer entender nada, nem evitar nada, nem negar que já estaríamos doce e irremediavelmente presos nela. Que eu conheceria o apartamento dela, e que me agradaria a decoração, e me sentiria bem em sua sacada enquanto fumássemos um cigarro dizendo as verdades elementares da vida, e quando fizéssemos sexo não seria desesperado, aflito, e nem quereria provar nada. Seria apenas a constatação de um encontro que já havia acontecido, côncavo, convexo, a temperatura ideal, confortável, o tempo conduzido perfeitamente, maestria natural de dois corpos que se aceitam.
Que teríamos almoços solitários, beijos super rápidos roubados pelos corredores, seria divertido manter isto tudo em segredo. Talvez até ousássemos uma pequena farra no banheiro quando ficássemos trabalhando até tarde. Daí começariam a desconfiar, notariam meu estranho bom humor, os sorrisos dela, eu já não reclamava tanto da vida, a pele dela parecia melhor, os risos à toa de ambos, às vezes pegariam eu ou ela cantarolando em frente à impressora.
E que então eu poderia contar a ela um ou outro segredo meu, um dos leves, ela não se assustaria tanto, acharia até bonitinho, iria pensar que me entende, me beijaria a testa quando eu estivesse com o pensamento vago. Me contaria suas coisinhas também, seus medos, seus ódios, seus desejos, eu ouviria, diria que entendo e ela acreditaria. Eu aprenderia a conviver com isto tudo, a suportar outra pessoa, a tolerar os defeitos dela, melhoraria os meus, não falaria tão mal da vida, nem ela. Enxugaria suas lágrimas em meu abraço quando ela ficasse nervosa por um motivo qualquer, por ter batido o carro ou brigado no trabalho. Ela aplacaria todo o meu ódio, me tornando gradativamente mais sereno, afinal agora eu teria um par de olhos negros que me bastariam para enfrentar o mundo. E na festa de final de ano da agência, resolveríamos escancarar mesmo, mostrar pra todos que estávamos juntos, todos nos veriam abraçados e íntimos, seríamos assunto por cerca de um mês, depois nos tornaríamos normais, corriqueiros, naturais.

E então a gente se acostumaria um com o outro, com nossas famílias, nossas manias, nossos domingos à toa. Talvez ela até torcesse pra algum outro time que não o meu. Sua mão buscaria a minha no cinema, ou quando caminhássemos pela rua, teríamos em nossos corpos um cantinho confortável para cada um de nós se ajeitar e dormir. Talvez eu pudesse lhe indicar alguns livros, e ela alguns pra mim, teríamos um filme preferido e uma música que seria a nossa. Isto tudo viraria planos, só pensaríamos para os dois agora, talvez morar junto, trocar de emprego, mudar de vida, ficar um pouco mais sério, já é hora, não é? Então eu me casaria afinal, ela estaria linda naquele dia, meu pai chorando emocionado, e a mãe dela também, meus primos bêbados xavecando as irmãs e primas dela, minhas tias pensando secretamente "e eu que pensei que ele nunca se casaria, sempre foi tão maluco, que bom que se ajeitou, Deus queira que sejam felizes", e meus tios pensando “que gostosa este malandro arrumou, e eu que até cheguei a pensar que ele fosse meio viado". Então um apartamento pequeno, perto dos nossos trabalhos, perto dos amigos, um com a nossa cara, e as viagens pra praia, pro sítio, os aniversários de família, eu saindo sozinho às vezes pra beber com meus amigos, ela pra falar mal de mim pras amigas dela. Quem sabe até um filho, um moleque pra eu ensinar coisas erradas, uma menina pra me matar de ciúme? Daí então eu perceberia, eu era este cara agora, mais velho, mais gordo, mais responsável, mais cansado, com contas e dívidas e alguém me esperando em casa, eu seria quase feliz, ou talvez pudesse mesmo ser feliz de fato, oras? Tinha chegado a minha hora também. E eu gostaria disto tudo.

Eu soube disto tudo. Eu vi isto tudo. Talvez por isso eu tenha ficado quieto, respondendo maquinalmente à outra garota que falava na salinha, enquanto ela olhava de soslaio pra mim. Talvez por isso, depois que a tagarela saiu da sala, eu a olhei e sorri um sorriso bobo, retribuído da mesma boba forma. Talvez por isso tenha ficado em silêncio, enquanto eu não sabia pra onde olhar, percebendo que ela me olhava às vezes, e que ela também tinha notado o meu all star branco. E ela fumou mais rápido que eu, apertou o cigarro no cinzeiro de uma forma um tanto nervosa, querendo demonstrar pressa, levantou ligeiramente atrapalhada, sussurrando ainda mais baixo do que na entrada, e eu que nem isso consegui? Talvez por isso, quando eu era então o único all star branco na sala, fiz a única coisa que deveria ser feita, a única coisa que conseguiria fazer: envelheci.

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